A mão fria, quase dormente, de tão gelada que estava.
Abriu uma pestana, depois a outra, e recolheu aquela mão para debaixo do cobertor.
Zero graus era quanto marcava o termómetro.
Olhou pela vidraça da janela, que lhe trazia o céu claro, de um azul absoluto.
Do mal, o menos. Não se adivinhava chuva.
Já se habituara a temperaturas baixas. Aquela terra era assim, que podia ela fazer?
Aconchegou-se e deixou que a sua mente vagueasse.
Desfilaram na sua frente, outras manhãs de domingo, longínquas, amaralecidas pelo tempo.
Fixou-se nas alegres, porque para tristezas, bastava aquelas com que a vida gostava de a presentear.
Como num filme antigo, viu-se novamente em cima daquela mota.
O pai comprara um motão preto, enorme, nunca tinha aparecido, lá no bairro, coisa assim.
Soltava um som potente, e toda a gente olhava quando ela passava.
Aos domingos de manhã, preparava-se a trouxa, que incluia alguns presentinhos para a avó, e seguiam viagem.
As bananas.........recordava-se bem, o pai sempre fazia questão de comprar bananas para a sua mãe, que tanto tinha penado para o criar, a ele e aos nove irmãos. Ficara viuva a avó, o marido morrera com um tumor na cabeça, e deixara-a a braços, com uma casinha minúscula, cheia de catraios.
Mulher pequena e magricela, mas não lhe olhassem ao corpo. A firmeza lia-se-lhe no olhar.
Depois da trouxa preparada, era hora de se acomodarem todos em cima da máquina. O pai á frente, a seguir a mãe, entre eles o mano, que ainda era quase bébé. A ela , sorria ao lembrar-se, cabia-lhe o melhor lugar...na traseira da mota, escarranchada em cima da mala de viagem.
Dali , do seu posto, que ficava a um nível superior ao dos outros, vislumbrava tudo em redor, e absorvia todos os aromas do seu Alentejo querido, terra do seu coraçãozinho de gazela.
Não esqueceria nunca aquele manto dourado, que se estendia até a linha do horizonte, para onde quer que a sua cabeça se voltasse. Da superfície dourada, emergiam , aqui e ali, umas manchas vermelhas, de um vermelho vivo, perfeito, como se uma mão invisível, tivesse, com um pincel muito comprido, dado umas pinceladas, para quebrar a monotonia.
Não, não esqueceria o cheiro a quente que vinha da terra, que quase lhe feria as narinas.
Quando era Primavera, ao percorrerem aquele caminho, ficava-lhe impregnado o cheiro das giestas floridas. Jamais encontrara em qualquer outro lugar, aquele cheiro.
Pensava agora, o melhor que lhe ficara da infância, era aquela especie de comunhão com a natureza, aquela sensação de ser parte daquele "todo".
Um sorriso aberto estampava-se-lhe na cara, quando, do seu posto de vigia, avistava a igreja que assinalava a casa da avó.
Naquela igreja , ao lado da casinha da avó, reunia-se, ao domingo, todo o povo dos montes das redondezas. O senhor prior vinha celebrar missa.
Era a avó quem cuidava da igreja.
Quando chegavam, a avó não corria para os abraçar, esperava que corressem para ela. Como quem tivesse aprendido, que, se corrermos na direcção do que amamos, podemos perdê-lo. Como se tivesse aprendido que, se ficarmos quietinhos e soubermos esperar, a vida faz chegar até nós, coisas maravilhosas.
Aquela avó...aquela avó não lhe deixara apenas o nome como herança. Muito daquela avó corria nas suas veias.
Pensando em veias....finalmente o sangue aquecera dentro daquela mão, que acordara enrregelada.
E as horas...que horas seriam? Não ! Dez e meia , já???
Ligou o carro e arrancou, enquanto colocava um cd de musica brasileira. Um qualquer, era indiferente, de qualquer forma a sua cabeca estava noutro lado. A musica servia apenas para se sentir menos solitaria.
A tarde estava calma, as ruas quase desertas, o sol, timidamente, tentado espreitar por entre os farrapos de nuvens que se espalhavam pelo ceu.
Lembrou-se das tardes de domingo da sua juventude, em que se aperaltava, para ir ao baile do clube do bairro onde morava. Quanta excitacao ! Quanta alegria !
Fora breve a sua juventude, como quase todas as coisas boas na sua vida. Decorreu mais ou menos entre os quinze e os dezassete anos....dois anos apenas.
Mas naquela idade, dois anos eram uma vida. Valera a pena.
Quando chegava ao clube, sempre vigiada por alguem da familia, que os tempos eram outros, percorria a sala com o olhar, para ver qual era o dancarino que lhe agradava.
Sorria agora, ao recordar, que quase sempre , quem a convidava para dancar, nao era quem ela gostaria, e via , com uma certa desolacao, o preferido dirigir-se a outra rapariga. Nao faltava quem quisesse dancar com ela, por isso rapidamente se embrenhava na danca e esquecia o episodio.
Adorava dancar, embora nao tivesse muito jeito.
Agora, ali sentada ao volante do carro, revivia esses momentos perdidos no tempo e na distancia.
Tinha a estranha sensacao de tudo aquilo ter acontecido numa outra vida, num outro planeta.
So se apercebeu de que tinha chegado ao destino, quando tentou , com dificuldade encontrar um lugar para estacionar.
Ali estava a loja portuguesa, um pequeno mundo, dentro do mundo que era aquela ilha. A loja, uma mistura de cafe, restaurante e mercearia, com televisao sempre a transmitir canais portugueses, reunia a comunidade madeirense daquela area de Londres. Os proprios proprietarios, eram, tambem eles oriundos da ilha da Madeira.
Gente que se mudou de uma ilha para outra.
Naquela tarde de domingo, havia duas ou tres mulheres com as suas criancas, comprando alguns artigos de mercearia, meia duzia de motoristas de carro de aluguer que jantavam feijoada, (seriam umas quatro horas e a loja fechava as cinco), e outros tantos solitarios, provavelmente menos abonados, que petiscavam.
Ela visitava a loja uma vez por semana, principalmente para comprar pao. `E claro que vinham sempre outras coisas, e aproveitava para matar saudade de uma bica bem tirada e de um pastelinho de nata.
Enquanto fazia as compras, ia pensando, como era triste, aquela gente juntar-se ali ao domingo, para poder sentir-se em casa.
Se para quem emigra com a familia, a vida nao `e facil, para quem emigra sozinho, `e muito mais dificil, pensara ela.
Cumprida a sua missao, retomou o caminho de casa. Mais ou menos trinta minutos, era quanto lhe restava para dar largas `a imaginacao e alimentar aquele sonho que a perseguia, e que se tornava ainda mais persistente quando estava, como agora, perto do aeroporto.
Talvez aquele aviao que estava agora a furar as nuvens, um dia a levasse, e o seu sonho pudesse finalmente ser realidade.
Eram ja duas e meia daquela tarde de domingo, quando acordou.
A noite havia sido agitada, precisava descansar.
Levantou-se, tipo zumbi, entrou na banheira, abriu o chuveiro, deixou que a agua lhe escaldasse a pele, na tentativa inutil de derreter o gelo que, dentro de si, se vinha acumulando.
Ainda meio atordoada, espalhou no rosto o nivea, apenas para hidratar, serviu-se do desodorizante, e usou o seu perfume de sempre, aquele aroma que usava desde a juventude e sem o qual nao se sentia completa.
Nao era de estravagancias, aquele perfume era das poucas coisas que nao dispensava.
Secou o cabelo, e ao escova-lo nao deixou de sentir um certo orgulho. Nao era bonito nem feio, era o seu, ja grisalho, dando pelo meio das costas, como simbolo das saudades que sentia.
Vestiu as calcas justas, meio licra meio algodao, enfiou o camisolao de malha fina, com manga `a tres quartos, que lhe dava pelo meio da coxa, calcou os peugos de seda e os tenis.
Deu uma espreitadela ao espelho, e achou que estava bem, toda de negro, apenas os tenis eram cor de areia. No tornozelo esquerdo, espreitava, entre a calca e a peuga, a habitual pulseirinha de ouro, com o seu talisma, aquele conjuntinho constituido pela figa, o corno, a meia lua, a estrela de cinco pontas e o coracaozinho que ela acrescentara. Aquele conjunto, era suposto dar-lhe sorte e livra-la de invejas. Nao era muito dada a crendices, mas pelo sim pelo nao, usava, desde ha muitos anos, aquele objecto, principalmente, porque gostava dele.
Estava completa. Nada de maquilhagem, nada de enfeites, nem brincos, nem colares, nem pulseiras, nem aneis ou aliancas, nem sequer um relogio.
Aquela espera era angustiante. Cada minuto parecia nao ter fim, tudo em si estava agitado.
La foi aguentando, rindo-se de si propria, tentando convencer-se de que nao havia nenhum motivo
para estar assim tao nervosa.
Dizia para consigo que talvez ele fosse horroroso, sem qualquer semelhanca com a voz que possuia,
e entao isso facilitaria as coisas. Dentro de poucas horas livrar-se-ia daquela sensacao de inseguranca
em que andava mergulhada. Logo ela, que sempre gostara de sentir os pes bem assentes no chao !
Com grande dificuldade, as horas passaram, e o tao esperado momento chegou finalmente.
No instante em que ela o viu caminhar na sua direccao, o coracao disparando, desatou a bater em desalinho,
as pernas ficaram bambas, e teve medo que toda a gente, incluindo o campino, percebecem a revolucao que estava a acontecer no seu intimo.
Caminhou ao seu encontro, fazendo um enorme esforco, para aparentar uma calma que estava longe de sentir.
Finalmente ali estava ele na sua frente, sorrindo, transformado em algo palpavel, nao apenas aquela imagem fugidia que a sua imaginacao fabricara.
Inacreditavel...ali assim...olhos nos olhos !
Feitas as apresentacoes, seguiram para a festa, e foram absorvidos pela multidao.
Enquanto a festa durou, a ceifeira ia deitando umas espreitadelas furtivas, na tentativa frustrada de descobrir nele defeitos ou comportamentos de que ela nao gostasse, que jusificassem que, de uma vez por todas, colocasse a cabeca no lugar.
Mau grado seu, tal nao aconteceu.
Pelo contrario, se a sua voz lhe agradara, a sua pessoa agradava-lhe ainda mais.
Comecou a sofrer, por antecipacao, pensando no momento em que teriam que se despedir.
E como tudo o que `e bom acaba depressa, a festa chegou ao fim. Despediram-se com um abraco, tendo ele comentado a rir:
- Que abraco tao apertado !
Se nao fosse noite, todos teriam visto como a ceifeira corou.
Naquela tarde, a triste ceifeira, estava longe de imaginar, o quão drásticamente a sua vida iria mudar.
Cansada de carregar a sua cruz, trazia no olhar, o cinzento das tardes de inverno, intercalado da claridade das manhãs de primavera,
e do brilho intenso e colorido, dos campos de papoilas, nas lonjuras da sua infancia.
Descansava das suas lides, quando lhe chegou, vinda do outro lado do monte, uma voz que jamais esqueceria.
Uma voz que, sem nada dizer, transportava consigo mundos de promessas, soltava despreocupadamente, toneladas de venturas.
Era a voz dele, a voz do campino, que conduzindo a manada, cantava la do alto do seu cavalo, imaginava ela. Cantava cantigas brejeiras.
Nao foram as cantigas dele que despertaram a sua atencao, nao, nao foram as cantigas, foi o som da sua voz que a cativou.
O som daquela voz, era melodia, era ternura, era amor, era paixao. Continha em si, a intensidade do sol de verao do seu Alentejo, assim como a suavidade de uma noite morna e de ceu estrelado. Aquela voz que mais parecia um apelo á vida instalou-se no seu peito, causando tal desassossego,
que a ceifeira nao dormiu nessa noite, nem na outra, nem na outra.
Ficava acordada a pensar o que tinha aquela voz que tanto a transtornava. Pensava no seu Alentejo e na leziria dele, separados por aqueles imensos montes que lhe pareciam intransponiveis.